20 de dez. de 2014

ZAP!

para Tavinho Paes

de repente você para na tela intermediária
entre um canal e outro da TV.
concentre-se nesse chiado
- é um portal.

shczzsxxxfsschhhhhhfsxxshhsfshchxx

I.
Hiroshima, mon amour
Alain Resnais e sequencias em preto e branco.
a bomba de fissão de urânio lançada em 6 de agosto de 1945 sobre a cidade japonesa se chamava Little Boy
- pequenos garotos órfãos de todas as guerras -
Little Boy e a doce ironia americana.

em 1969 um astronauta hasteou a bandeira
dos Estados Unidos da América
em solo lunar.
Guerra nas Estrelas
e suas espadas de neon.
neon dos letreiros japoneses,
da Broadway, de Las Vegas
- há muitas cidades de neon ao redor do mundo.

e As Cidades Invisíveis de Italo Calvino,
de pessoas-livro como em Fahrenheit 451,
e a City Lights Books de Lawrence Ferlinghetti.

e há você zapeando canais,
e apagando as fronteiras do mapa
com lápis-borracha.

II.
Sherlock Holmes, detetives de filme Noir e Inspetor Bugiganga se encontram num café de Paris ou Buenos Aires, entre cafés e cigarros, e resolvem criar uma força-tarefa para compreender a existência humana.
- “isso não é mais assunto para filósofos e poetas”, diz um deles.
- “esses pulhas não deram conta do recado”, completa outro soltando uma baforada de fumaça ao melhor estilo noir.
em uma mesa próxima, metido num sobretudo, chapéu sobre os olhos, você observa a cena  e anota tudo num caderninho de capa de couro azul-marinho; se eles desvendarem o sentido da vida,
você será o primeiro a saber.

III.
nós não caímos na toca do coelho
nem vimos o sorriso do gato de Alice.
descemos para comprar cigarros,
paramos numa esquina,
e cavamos um buraco no chão,
atravessando o centro da terra até sair do outro lado.
foi como chegamos no Japão.
neom, neom, neom
- entoamos o mantra da moderna civilização -
neommmmmmmm...

na ordem secreta do Kaos
você é um deus que dança
humano, demasiado humano.

IV.
de repente,
ficamos extraordinariamente ricos:
herdamos “5 mil quilômetros quadrados
na Antártica, um velho elefante de circo
e manuscritos de alquimia”.
“quando eu morrer,
o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito”,
lamentou Clarice.
também herdamos seu cavalo selvagem.

somos extraordinariamente ricos
e damos a volta ao mundo
cavando buracos na terra
como toupeiras.

quando morrermos,
alguém herdará
nossos labirintos subterrâneos.

V.
enquanto escavamos nossas tocas
com passagens e rotas de fuga,
na superfície da terra,
continuam erguendo muros.
da Muralha da China ao Muro de Berlim,
bloqueios sempre servem ao controle militar.
em 2011, no Egito,
a junta militar ergueu muros
em ruas da cidade
para impedir o trânsito de rebeldes.

atravessá-los é missão para toupeiras:
nós passamos por baixo.

VI.
desde que o homem colonizou a Lua,
ela deixou de ser assunto para poetas.
a NASA invadiu o poema.
Little Boy contaminou o poema.
Marilyn Monroe desbancou
a passante de Baudelaire
- Hollywood virou a nova musa do poema.
nós somos apenas pequenos garotos
brincando no lixo atômico
- palavras radioativas, dejetos.
quando o poeta Tavinho Paes urinou sobre
o palco do Teatro Municipal de São Paulo,
aquilo era poesia.

VII.
outro dia me deparei com um desses
profetas de rua
de longos cabelos e barbas
- insanos -
bradando aos ventos o fim dos tempos.

se em vez dele, fosse você,
eu acreditaria na profecia.

VIII.
utilidade pública:

trocamos de lugar todas as placas
de sinalização de trânsito,
e todas as placas
de nomenclatura das vias.
agora,
as ruas estão tão cheias de poesia
que é impossível não se desorientar
na cidade.

IX.
poema relâmpago:

porque todos os guarda-chuvas do mundo
nunca serão suficientes.
então eu te conduzo pela mão
para dentro da tempestade
e fico lá com você,
até o céu cansar de chover.

19 de set. de 2014

NÃO É SOBRE DESPEDIDAS

e então você me dá as costas
e eu te vejo caminhando
as mãos nos bolsos
os olhos acompanhando os buracos da calçada
a solidão pendurada nos seus ombros
se balançando pra lá e pra cá
te fazendo cambalear um pouco.
o dia vai clareando
e você sumindo no horizonte...
quer dizer, não, não há horizonte!
você some ao dobrar uma esquina
de repente
as luzes dos postes se apagam
o funcionário sobe a porta de ferro da padaria,
fazendo um enorme ruído rasgar o dia
e um bando de pombos revoar
para o outro lado da rua.

outro jeito de ir embora
é se distrair observando
a curvatura da cinza do cigarro que se queima longamente,
um rótulo de cerveja,
as unhas descascadas,
ou qualquer conversa desinteressante simulando um enorme interesse
enquanto tenta não pensar em nada.
é não olhar para trás,
e nem perceber a primeira cena.

ir embora é carregar silêncio nos pés e mordaças no peito,
e nós sabemos como ninguém estar sempre indo embora.

mas isso não é sobre despedidas.
é sobre encontros.
a gente se esbarra.

é que desde a primeira vez,
sempre foi o último beijo.