In. Todos esses cães latindo no peito, 2012

DE QUANDO LAMENTÁVAMOS O DISCO ARRANHADO


Hendrix na vitrola
você na cabeça
e esse meu maldito gosto por coisas antigas:
Hendrix, vitrola, você.
vou quebrar o disco e destruir a vitrola
e o que eu faço com você?
o que eu faço com VOCÊ?!
vou deixar tocar mais uma faixa
a vitrola não tem culpa
Hendrix não tem nada com isso
vou deixar tocar todo o disco - lado A e lado B.
e o que eu faço com você? o que eu faço com VOCÊ?!
e esse disco arranhado saltando no peito
e esse meu maldito gosto por coisas antigas...

ACERTO DE CONTAS

preciso te devolver teus chinelos
um ou dois livros
e essa faca que você esqueceu no meu peito

CARTA DO SÓTÃO
para Fernando Klipel

Não lembro quando passei não sei quanto tempo trancada num sótão desconhecido. Era escuro e empoeirado, como todas as coisas desconhecidas. Muitos objetos esquecidos de sua utilidade ali repousavam. Não era um repouso tranquilo, mas um congelamento de queda. As coisas se penduravam por um fio, umas agarrando-se às outras para não cair, desesperadamente. Eu não estava presa, não. Era mais uma liberdade poder se trancar no sótão, sabe. Eu era como aqueles objetos: esquecida de minha utilidade, congelada no momento da queda, suspensa. E então eu era livre como cada objeto que já não se pode usar. Livre como uma bicicleta quebrada. Como um disco arranhado que se recusa a tocar. As coisas descartadas, esquecidas, são as únicas coisas verdadeiramente livres no mundo. As que se rebelam contra a sua função e conquistam o direito de não servir pra nada. Eu era muito ingênua, meu bem, quando apontava pássaros e outros vôos e coisas com asas. Livre de verdade é um isqueiro sem gás. Perder o gás não é a morte do isqueiro; não, muito pelo contrário, é a sua libertação! A partir dali ele deixa de ser útil, e começa a viver. Então eu fiquei ali trancada no sótão com coisas vivas e cada coisa conversava comigo, me contava a sua história, de como começou a viver quando conquistou o direito de não fazer nada. As coisas de que faltavam pedaços me confessavam que, sim, sentiam falta dos pedaços partidos, sentiam dor nas estruturas retorcidas ou algo do tipo. Mas um relógio sem ponteiros me disse: – “é o preço que se paga para ser livre”. E me disse comovido e orgulhoso: – “eu não marco as horas; eram elas que me marcavam”. E me disse isso com uma lágrima parada nas 3 horas, 47 minutos e 3 segundos. – “Eu não marco as horas, eu sou livre”. Mancando sobre meio ponteiro de segundo, mas com um sorriso firme. Foram horas magníficas, essas incalculáveis, que passei na companhia desses objetos obsoletos. Sei que você gostaria de conhecê-los. Você, que sempre me perguntou: – “o que é ser livre?” E eu sempre disse cada hora uma coisa, e você sempre fez diferente do que eu disse. E assim fomos forjando liberdades. Mas meu bem, agora eu sei: a gente precisa ser como uma mesa sem os pés. (E quando não há chão, quem precisa de pés?!) Um avião sem asas, de turbinas quebradas, é mais livre que tudo. Os aviões quebrados incomodam demais na grandiosidade da sua liberdade. Não podem ser trancados no sótão, escondidos. Estão ali, exibindo descaradamente a sua liberdade à vista de todos; triunfantes. Inúteis. Eu os admiro. No fundo sempre fomos mesmo escandalosos aviões quebrados.